Introdução
Eu diria que esse texto é
sumamente importante não apenas para entender o sermão da montanha, mas toda a
relação do Novo Testamento com o Antigo Testamento; da lei com a graça.
Jesus até então estava a falar
sobre o caráter de seus discípulos e aqui faz uma afirmação contundente; a justiça
deles deveria ser muito superior à dos fariseus. Justiça da qual os seus
discípulos têm fome (v. 6) e por cuja causa eles sofrem (v, 10). Essa
expressão, portanto, assume uma correspondência à lei moral de Deus. É aqui que pela primeira vez Jesus utiliza a
fórmula característica e dogmática: “Porque... (eu) vos digo” (vs. 18
e 20). Uma forma de falar jamais usada
por qualquer profeta antigo ou escriba contemporâneo.
Nossa reflexão irá se dividir
em duas partes: primeira, Cristo e a lei (vs. 17, 18) e a segunda, o cristão e
a lei (vs. 19, 20).
1. Cristo e a lei (vs. 17,18)
Ele começa dizendo-lhes que
não imaginem, nem por um momento, que ele veio para revogar a lei ou os
profetas, isto é, todo o Velho Testamento ou qualquer parte dele. O modo como
Jesus enunciou esta declaração negativa dá a entender que alguns já pensavam
exatamente isso que ele agora estava contradizendo. Embora o seu ministério
público tivesse começado há tão pouco tempo, os seus contemporâneos estavam
profundamente perturbados com a sua suposta atitude para com o Velho
Testamento.
Ao
dizer “eu porém vos digo” é uma declaração que ele está falando com base
em sua própria autoridade. Por isso ficava subentendido em alguns
que ele estava dizendo que veio para revogar a lei e os profetas. Na realidade
essa forma de pensar ainda está presente em muitos hoje em dia. Interpretam as
palavras de Cristo de tal modo que os fazem desprezar os conteúdos da Lei e dos
profetas. Entretanto, Jesus afirmou de modo muito categórico que não veio para
revogar, mas para cumprir.
O verbo traduzido por
"cumprir" (plërösai) significa literalmente "encher" e
indica, como Crisóstomo disse, que "suas
palavras (de Cristo) não eram uma revogação daquelas primeiras, mas uma
exposição e o cumprimento delas". O Velho Testamento instrui-nos sobre
Deus, sobre o homem, sobre a salvação, etc. Todas as grandes doutrinas bíblicas
se encontram nele. Mas, ainda assim, foi apenas uma revelação parcial. Jesus
o "cumpriu" todo, no sentido de completá-lo com a sua pessoa, seus
ensinamentos e sua obra.
Jesus "cumpriu"
integralmente, no sentido de que o predito aconteceu com ele. A
primeira declaração do seu ministério público foi: "O tempo está
cumprido..." (Mc 1:14). Suas próprias palavras aqui, (Eu) vim, denotam
essa mesma verdade. Repetidas vezes ele declarou que as Escrituras deram
testemunho dele, e Mateus enfatiza isto mais do que qualquer outro evangelista,
através da sua repetida fórmula: "Ora, tudo isto aconteceu para que se
cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta..." Em
vários textos é dito que a Lei e os profetas apontavam para Cristo.
Profetizaram até João. Isso tem seu clímax na sua morte na cruz, onde todo o
sistema cerimonial do Velho Testamento, sacerdócio e sacrifício, cumpriu-se
perfeitamente (Mt 7:12. 167 Mc 2:23-3:6; Hb 1:1,2).
Assim, foi abolida toda
liturgia cerimonial veterotestamentária. Calvino diz a respeito: "Apenas
o uso deles foi abolido, pois o seu significado foi confirmado mais
plenamente."
O Velho Testamento contém
preceitos éticos, ou a lei moral de Deus. Jesus obedeceu-os de
modo mais pleno que qualquer um poderia. O que nos foge às vezes à percepção é
que Jesus rejeitou a interpretação superficial da Lei realizada pelos fariseus. Ele
revela a profundidade do conteúdo da Lei como é visto no restante do capítulo 5
de Mateus.
Na história da igreja sempre houve
aqueles que não estenderam a relação de Jesus com a lei. Marcião, herege do
século II, eliminou do Novo Testamento as referências ao Velho Testamento, é
claro que apagou essa passagem. Os discípulos dele a inverteram: "Eu vim,
não para cumprir a lei e os profetas, mas para aboli-los!”
A
Bíblias declara que Cristo é "o fim da lei", não
significa que agora estamos livres para desobedecê-la, mas justamente o oposto.
Significa, antes, que a aceitação de Deus não é através da obediência à lei,
mas através da fé em Cristo, e a própria lei dá testemunho destas boas novas.
Após declarar o seu propósito
em vir era o cumprimento da lei, Jesus prossegue, apresentando a causa e a
consequência disso. A causa é a permanência da lei até que seja
cumprida (v. 18); e a consequência é a obediência à lei, que os cidadãos do
reino de Deus devem prestar (vs. 19, 20). Isto é o que Jesus tem a dizer sobre
a lei que ele veio cumprir: Porque em verdade vos digo: Até que o céu e a terra
passem, nem um “i” (yod, a menor das
letras do alfabeto grego, quase tão pequena como uma vírgula) ou um “til” (keraia, um acento, sinal que distinguia
algumas letras hebraicas de outras) passará da lei, até que tudo se cumpra. Enquanto
houver céus e terra como os conhecemos há a necessidade de se observar a lei do
Senhor em seus aspectos morais.
A nossa postura diante da lei
fica mais desenvolvida nos versículos seguintes.
II -
O cristão e a lei (vs. 19,20)
Jesus agora enfatiza a importância
dos mandamentos para a vida dos discípulos, associando a sua vivência e ensino
com a grandeza no reino de Deus. Jesus não aceitaria a relativização dos
preceitos divinos ao bel prazer como fizeram muitos mestres da lei, mas a
justiça deles deveria ser superior. Não poderia viver a realidade do Reino sem
isso, não uma justiça meramente externa, com mero comportamento pessoal, mas
como ele vai deixar claro, justiça do coração, das intenções, das motivações.
Os fariseus em seu suposto
zelo acrescentaram à Lei outros mandamentos e proibições, totalizando assim 248 mandamentos e 365 proibições. A
justiça dos discípulos então seria superior não por conta de obedecer excessiva
quantidade de preceitos, mas porque seria de coração. É o cumprimento da
promessa feita por meio do profeta Jeremias: "Porei a minha lei no íntimo
deles e as escreverei nos seus corações” [...] (Jr 31:33). E por meio de
Ezequiel: "Porei dentro em vós o meu Espírito, e farei que andeis nos
meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis" (Ez 36:27).
Assim coincidem as duas promessas de Deus: de colocar a sua lei dentro de nós e
de pôr em nós o seu Espírito.
Tal justiça exigida por Cristo
é evidência do novo nascimento e ninguém entra no reino de Deus sem ter nascido
de novo.
Quando Jesus a seguir expõe a
forma de expressão dessa justiça superior ele não está contradizendo a lei mosaica
com a expressão “eu, porém vos digo”, mas contradizendo as perversões da lei das
quais eram culpados os escribas e fariseus. Um exemplo claro disso está no versículo
43 quando Jesus cita Levítico 19:18: "Não procurem vingança, nem
guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si
mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19.18 NVI). A esse texto os escribas e fariseus
acrescentaram o “odiarás o teu inimigo”.
Algumas pessoas atualmente por
não compreenderem a relação do cristão com a lei de Deus, desprezam muitos
preceitos expressos no Antigo Testamento; outros querem vivê-los como se a
nossa aliança em Cristo não nos tivesse liberado dos costumes do judaísmo, ou
seja, pensam que há problema em comer carne de porco, querem celebrar a Páscoa
hebraica e coisas do tipo.
Entendamos que a nossa relação
para com os preceitos veterotestamentários deve ser de obediência no que tange
à moralidade e a uma vida de compromisso com o Senhor; não trazendo para nossa
realidade o que diz respeito aos costumes de época e de rituais de culto.
Conclusão
1. Que o nosso amor pela Palavra de Deus possa
ser bem diferente do zelo dos fariseus pela Lei. Eles seriam capazes de matar para
preservar a Lei assim como pôde ser visto historicamente supostos cristãos
usando de violência para supostamente preservar os costumes cristãos.
2.
Nossa postura deve ser de negar o antinomianismo e o legalismo. No
antinomismo as pessoas querem se ver livres de regras, de normas. Para o
cristão não tem essa de “eu não sou obrigado a nada”; nossa consciência deve
estar comprometida com as verdades do Senhor expressas tanto no Novo quanto no
Antigo Testamento. No legalismo as pessoas vivem a mera aparência de espiritualidade
por se conformarem a um padrão cultural de obediência a regras de costumes
religiosos.
3. Vivemos pela graça de Deus, de fato, mas a graça
de Deus traz expectativas elevadas para nós. Não pode ser menosprezada ou suavizada
como desculpa para não obediência ao que a Palavra exige.
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