A imortalidade da alma e o estado intermediário

Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos. Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos (Lc 16.19-31).


Introdução

No estudo anterior foi assinalado que a morte física é a separação de corpo e alma, e marca o fim da nossa presente existência física. Necessariamente envolve e resulta na decomposição do corpo. Marca o fim da nossa presente vida e o fim do “corpo natural”. Mas agora surge a questão: Que acontece com a alma? A morte física dá fim à sua vida, ou ela continuará a existir e a viver após a morte? Sempre foi firme convicção da igreja de Jesus Cristo que a alma continua a viver depois da sua separação do corpo.


I - Testemunho da Revelação Especial Quanto à Imortalidade da Alma.

A Bíblia fala de Deus como o único que tem imortalidade (1Tm 6.15), e nunca afirma isso a respeito do homem. Não há nenhuma menção explícita da imortalidade da alma, e muito menos qualquer tentativa de provar isso de maneira formal. Mas, mesmo que a Bíblia não afirme explicitamente que a alma do homem é imortal, ela pressupõe claramente em muitas passagens que o homem continua sua existência consciente após a morte.

a) No Antigo Testamento: É um fato bem conhecido e geralmente reconhecido que a revelação de Deus na Escritura é progressiva e aumenta gradativamente em clareza; e é evidente que a doutrina da imortalidade, no sentido de uma vida eterna e bem-aventurada, só poderia ser revelada em todos os seus aspectos depois da ressurreição de Jesus Cristo, que “trouxe à luz a vida e a imortalidade” 2 Tm 1.10.
·        Em sua doutrina de Deus e do homem: As próprias raízes da esperança de Israel quanto à imortalidade estavam em sua crença em Deus como o seu Criador e Redentor, o Deus da Aliança, que nunca falharia com o homem. O homem foi criado para comunhão com Deus, é pouco menor do que os anjos, e Deus pôs a eternidade no seu coração (Ec 3:11).
·        Em seus ensinamentos a respeito da ressurreição dos mortos: Cristo assinala que ela foi ensinada implicitamente na declaração, “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”, Mt 22.32, cf. Êx 3.6, e repreende os judeus por não compreenderem as Escrituras sobre este ponto. Além disso, a doutrina da ressurreição é ensinada explicitamente em passagens como Jó 19.23-27; Sl 16.9-11, 17.15; 49.15; 73.24; Is 26.19; Dn 12.2.
·        Em certas passagens notáveis do Antigo Testamento, que falam da alegria do crente em comunhão com Deus depois da morte: Jó 19.25-27; Sl 16.9-11; 17.15; 73.23, 24, 26.
b) No Novo Testamento: No Novo Testamento, depois que Cristo trouxe à luz a vida e a imortalidade, naturalmente as provas se multiplicam.
A sobrevivência da alma: As almas dos crentes sobreviverão, vê-se de passagens como Mt 10.28; Lc 23.43; Jo 11.25, 26; 14.3; 2 Co 5.1; e várias outras passagens evidenciam muito bem que se pode dizer a mesma coisa das almas dos ímpios, Mt 11.21-24; 12.41; Rm 2.5-11; 2 Co 5.10.
A ressurreição pela qual o corpo também é levado a participar da existência futura: Para os crentes, a ressurreição significa a redenção do corpo e a entrada na perfeita vida de comunhão com Deus, na plena bem-aventurança da imortalidade Lc 20.35, 36; Jo 5.25-29; 1 Co 15; 1 Ts 4.16; Fp 3.21. A ressurreição dos ímpios é mencionada em Jo 5.29; At 24.15; Ap 20.12-15, mas isto dificilmente poderá chamar-se vida. A Escritura a denomina morte eterna.
A vida bem-aventurada eternidade dos crentes, na comunhão com Deus: A imortalidade dos crentes não é uma simples existência sem fim, mas uma encantadora vida de felicidade na comunhão com Deus e com Jesus Cristo, pela fruição da vida que é implantada na alma enquanto ainda na terra Mt 13.43; 25.34; Rm 2.7, 10; 1 Co 15.49; Fp 3.21; 2 Tm 4.8; Ap 21.4; 22.3, 4.


II – O estado intermediário.

a) A Bíblia não ensina a doutrina do purgatório.

No ensino da Igreja Católica Romana, o purgatório é o lugar para onde a alma dos crentes vai a fim de ser purificada do pecado, até que esteja pronta para ser admitida no céu. De acordo com esse pensamento os sofrimentos do purgatório são dados por Deus em substituição à punição dos pecados que os crentes deveriam ter recebido nesta vida, mas não receberam.
Mas essa doutrina não é ensinada na Escritura, e é de fato contrária aos versículos citados anteriormente. A Igreja Católica Romana retirou o apoio para essa doutrina não das páginas das Escrituras canônicas que os protestantes aceitaram desde a Reforma, mas nos escritos apócrifos. Antes de tudo, deve ser dito que essa literatura não é igual à Escritura em autoridade e não deve ser tomada como fonte de doutrina cheia de autoridade. Além disso, os textos dos quais essa doutrina é derivada contradizem afirmações claras do NT e, assim, se opõem ao ensino da Escritura. Por exemplo, o texto primário usado nesse sentido, 2 Macabeus 12.42-45, contradiz as afirmações claras da Escritura citadas anteriormente a respeito de partir para estar com Cristo. O texto diz o seguinte: “Depois, tendo organizado uma coleta individual, Judas Macabeus, o líder das forças judaicas] enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado: agiu assim absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas, se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso o seu modo de pensar. Eis por que ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, afim de que fossem absolvidos do seu pecado”.

c) A Bíblia não ensina a doutrina do “sono da alma”.

Essa doutrina ensina que, quando morrem, os crentes entram no estado de existência inconsciente, e a próxima coisa de que terão consciência será quando Cristo retornar e os ressuscitar para a vida eterna. Essa doutrina nunca encontrou grande aceitação na igreja.
O suporte para esse pensamento tem sido geralmente encontrado no fato de que a Escritura diversas vezes fala do estado dos mortos como de um sono ou de “adormecer” (Mt 9.24; 27.52; Jo 11.11; At 7.60; 13.36; l Co 15.6,18,20,51; l Ts 4.13; 5. l0). Além disso, certas passagens parecem ensinar que os mortos não possuem existência consciente (v. Sl 6.5; 115.17 [mas repare no v. 18!]; Ec 9.10; Is 38.19). Porém, quando a Escritura apresenta a morte como sono, trata-se simplesmente de uma expressão metafórica usada para indicar que a morte é somente temporária para os cristãos, exatamente como o sono é temporário. Isso é claramente visto, por exemplo, quando Jesus fala com seus discípulos a respeito da morte de Lázaro. Ele diz: “Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou até lá para acordá-lo” (Jo 11.11). Então João explica: “Jesus tinha falado de sua [de Lázaro] morte, mas os seus discípulos pensaram que ele estava falando simplesmente do sono. Então lhes disse claramente: ‘Lázaro morreu” (Jo 11.13,14). As outras passagens que falam a respeito de pessoas dormindo quando morrem devem ser também interpretadas como simplesmente uma expressão metafórica para ensinar que a morte é temporária.

c) O salvo vai direto para o Céu.

A morte é a cessação temporária da vida corporal e a separação entre a alma e o corpo. Uma vez que o crente morre, embora o seu corpo físico permaneça na terra sepultado, no momento da morte sua alma (ou espírito) vai imediatamente para a presença de Deus com regozijo. Quando Paulo reflete sobre a morte, ele diz: “Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor” (2 Co 5.8). Estar ausente do corpo é estar em casa com o Senhor. Ele também diz que o seu desejo é “partir e estar com Cristo, o que é muito melhor” (Fp 1.23). Jesus disse ao ladrão que estava à sua direita: “Hoje você estará comigo no paraíso” (Lc 2 3.43). O autor de Hebreus diz que, quando os cristãos comparecem para adorar juntos, eles vêm não somente à presença de Deus no céu, mas também à presença dos “espíritos dos justos aperfeiçoados” (Hb 12.23).

d) A alma do descrente vai imediatamente para a punição eterna.

A Escritura nunca nos encoraja a pensar que as pessoas terão outra oportunidade de confiar em Cristo após a morte. De fato, trata-se exatamente do contrário. A parábola de Jesus a respeito do rico e de Lázaro não dá esperança alguma de que as pessoas possam passar do inferno para o céu após terem morrido. Embora o rico no inferno tivesse gritado: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou sofrendo muito neste fogo”, Abraão lhe respondeu: “entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem” (Lc 16.24-26).
O livro de Hebreus associa a morte com a consequência do julgamento em uma sequência imediata: “Da mesma forma, como o homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o juízo” (Hb 9.27)


Conclusão

Há em escatologia muitos pontos difíceis que preferimos no momento deixar para outra discussão, como as diferenças interpretativas do Sheol-hades, entretanto, o que aqui foi exposto é indubitável se crermos verdadeiramente na inspiração bíblica e se tivemos o mínimo de rigor exegético.



Fontes:
HOEKEMA, Anthony A. A Bíblia e o Futuro. Tradutor Karl H. Kepler. São Paulo. Casa Editora Presbiteriana, 1989.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática.

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